quarta-feira, 24 de março de 2010

Vulnerabilidades

Quando era criança quase que adorava estar doente. Faltar às aulas, ter a mãe constantemente a zelar por nós e pelos nossos caprichos (quero uma torrada! e um chá!), ter mimos e atenção, por horas indefinidas.

Estar doente enquanto se está sozinho é das piores sensações que já experimentei. Estar dorido de febre, tremendo, com a cabeça a estalar, ter que ir fazer o cházinho, tão característico da mãe, é-me estranho e não me parece algo normal. Para além dos males da gripe, sento uma falta de carinho e atenção que me aflige ao máximo.

Já passei por muito, aprendi bastante nestes últimos meses. Depressa uma pessoa se desabitua do hábito quotidiano de estar sentado ao computador, esperando que alguém, quase sempre a mãe, nos chame para jantar. Mesa posta, comida feita. Muitas vezes absorvida em breves minutos, seguidos dos quais nem um "obrigado", mas sim o levantar imediato da mesa. Actos irreflexos, involuntários, banais. Quando se vive sozinho, somam-se responsabilidades, obrigações "porque é que tenho de ir lavar a loiça se ainda ao almoço a lavei?"... porque ninguém o fará, senão eu.

Mas estar doente, não é algo que se consiga suportar, quando as saudades se acumulam. A semi-independência pela qual lutamos nunca visa estes momentos. "Se estiver doente? Desenrasco-me...". Mas estar doente, não é o mesmo que ter de cozinhar, ter de lavar a loiça, ou a roupa. Estar doente é estar vulnerável, é querer alguém do nosso lado, é o chá trazido sem demora.
E quando não o temos, somos a pessoa mais só deste Mundo.

domingo, 21 de março de 2010

Trust will get you down



You shouldn’t be alone in there
You could be above ground

quinta-feira, 18 de março de 2010

Os "novos" miseráveis


Ao meio-dia, ao sair de casa deparo-me com eles, os que apelidamos de indigentes, a apanhar do chão os restos do Mercado. Frutas, vegetais, tudo... Espectáculo degradante da dignidade humana. Os homens do lixo, encarregues de limpar aquilo que os outros apanham do chão, aguardam já como tradição, que acabem a sua tarefa, para começar a sua.

Ao fim do dia, ao chegar a casa deparo-me com outro cenário, talvez não tão degradante mas não menos aflitivo. São eles de novo, mas desta vez submissos, aguardando o que para muitos é a única refeição do dia: uma sopa quente, que os leva a esperar obedientemente em fila. Vejo pessoas novas, velhas, homens e mulheres...

Com receio de os envergonhar, desvio o olhar, só para ver mais duas pessoas, desta vez a vasculharem o lixo à porta do meu prédio.

São os "novos" miseráveis (que de novo têm pouco, já que sempre existiram).
E esta é a Paris do século XXI. A civilização avança, o Mundo sofistica-se, mas as desigualdades e a degredo humano, esses permanecem intactos. Resta-nos assobiar e fingir que nada disto acontece a cada dia, nas cidades mais caras, modernas, e prósperas (para alguns, claro está)...

Ilustração original do Jean Valjean de "Os Miseráveis", livro escrito por Victor Hugo em 1862.